Nasci e fui criada em uma cidade de oito mil habitantes, onde todo mundo vive de forma mais ou menos igual. Nesse contexto, eu nunca fui estimulada a questionar e refletir sobre o papel da mulher na sociedade. Na minha cidade, praticamente todas as mulheres casavam e, rapidamente, tornavam-se mães. Algumas até trabalhavam fora; outras, nem isso. Esse era o esperado, o natural e era o que todas deveriam perseguir.
Desde cedo, já entendi que as mulheres que não conseguiam um casamento não eram vistas com bons olhos. Algumas, que continuavam tentando encontrar um homem para amar, eram vistas como “mulheres fáceis” ou “putas”; já as que haviam desistido de encontrar alguém, eram chamadas de “solteironas” e “mal-amadas”.
Quando eu tinha quase 16, me mudei com meus pais para outra cidade, dez vezes maior – com menos preconceitos e limitações, mas, ainda assim, muito pequena e interiorana. Eu não ouvia falar sobre feminismo e sobre mulheres, casadas ou não, que não tiveram filhos por opção. Isso absolutamente não existia no meu mundo.
Então, se eu disser que “desde criança eu sabia que não queria ser mãe”, estaria mentindo; mas, se eu disser que meu maior sonho sempre foi esse, estaria igualmente mentindo. É verdade que minhas brincadeiras de criança giravam em torno de cuidar de bonecas, alimentá-las, trocar fraldas e cuidar da minha casa de mentirinha, mas eram as opções que eu tinha de brincadeira. Apesar disso, lembro de nunca ter tido esse desejo da maternidade tão forte em mim, como algumas mulheres relatam, mas, apesar disso, me imaginava tendo filhos um dia, talvez simplesmente porque as coisas eram assim e todo mundo ao meu redor fazia isso – pelo menos as mulheres “bem sucedidas”.
A mudança
Em 2002, eu tinha 21 anos e fui morar em Florianópolis. Lá, tive a sorte de dividir apartamento com a primeira feminista que conheci na vida. Aos poucos, fui vendo que a forma dela pensar era bem “pra frente” e, por algum motivo, os posicionamentos dela me inspiravam e me provocavam a refletir se minhas escolhas, crenças e desejos eram realmente meus ou se eu simplesmente estava condicionada a pensar como a sociedade esperava e, assim, seguindo um “movimento de manada”.
Essa foi a primeira pessoa que me abriu os olhos para a possibilidade de pensar como uma mulher livre e autossuficiente. No entanto, não foi minha colega de apartamento a primeira a me fazer refletir sobre a maternidade. Aos 22 anos, eu conheci uma mulher que me disse abertamente, com uma naturalidade que me soou espantosa, que nunca seria mãe, porque tinha outras prioridades na vida, como terminar a faculdade, fazer intercâmbio no exterior, mestrado, doutorado, passar em um bom concurso, e só depois encontrar um companheiro para dividir a vida e curtir o casamento sem as dificuldades que uma criança implica na rotina.
Ao ouvir isso, eu não devo ter conseguido disfarçar o meu espanto. Pra mim, que nunca havia pensado nessa possibilidade, pareceu um tanto exagerado. Então, a mãe da minha colega, uma senhora chique e divorciada desde que a filha tinha quatro anos, ao perceber que eu estava ligeiramente transtornada com aquela revelação, chancelou a escolha da filha:
“Sabe o que é, Patrícia? Criança dá muito trabalho… e, se o casamento não der certo, sobra pra mãe cuidar sozinha do filho! Casamento nem sempre é pra vida toda; mas filho, sim!”.
Lembro de pensar que a escolha da minha colega refletia a experiência triste da mãe. Na época, eu, do alto da minha experiência sem filhos e sem casamento, pensava que a mãe havia passado à filha uma visão distorcida e negativa da maternidade, pelo fato de ter sido infeliz no casamento – mas hoje eu entendo que ela simplesmente fez o que poucas mulheres têm coragem de fazer: não romantizar a maternidade. Ela mostrava a vida como ela é… sem óculos cor-de-rosa, para que, quando adulta, a filha pudesse fazer uma escolha mais racional, diferente de como (hoje imagino que) foi a sua decisão.
Fui babá por uma semana
Passados alguns meses, aconteceu da babá de uma amiga minha deixá-la na mão. Simplesmente sumiu sem dar nenhuma satisfação, e minha amiga, que já havia faltado ao trabalho na semana anterior para cuidar do filho, seria demitida caso não pudesse trabalhar na semana seguinte. Como ela trabalhava apenas na parte da manhã e eu, apenas na parte da tarde, imediatamente me prontifiquei a ajudá-la naquela semana – afinal, eu cuidei de bonecas a infância inteira, certo? Não devia ser muito diferente. Por uma semana, me mudei para a casa dela. Só que eu não imaginava que uma criança chorasse tanto à noite e que, mesmo assim, pudesse ter tanta energia de manhã, para fazer “arte” e birra.
Eu percebi, naqueles cinco dias, que cuidar de bonecas era infinitamente mais fácil. Eu não fazia a menor ideia do quão difícil era cuidar de uma criança e do quão irritante, cansativo e desgastante isso poderia ser. Eu dormia pouco à noite, porque ele acordava várias vezes (e qualquer barulhinho me acorda), fiquei super cansada naquela semana e, então, eu lembrei daquelas palavras da mãe da minha ex-colega: casamento não é para sempre. Essa minha amiga também era separada do pai do filho dela – e ele não estava passando as noites em claro, nem as manhãs vendo desenho infantil na programação da TV aberta para que a mãe de seu filho pudesse trabalhar. Foi um estágio e tanto e essa pequena experiência me trouxe uma grande certeza: a de que eu não queria aquela vida pra mim! Contudo, demorei algum tempo para ter coragem de falar abertamente ao mundo que eu não seria mãe.
Por alguns meses, pensei secretamente a respeito desse assunto, ainda não tinha certeza se era possível ser feliz sem filhos… até que namorei um homem que compartilhava desse mesmo ponto de vista e com quem pude trocar as primeiras ideias. A naturalidade, tranquilidade e liberdade com as quais ele expressava seu posicionamento me inspiraram a perder o medo de falar sobre isso. Em certa medida, minha ignorância sobre determinados aspectos do patriarcado e minha inocência em acreditar que eu poderia falar sobre esse assunto da mesma forma como meu namorado o fazia, sem causar espanto, foi uma coisa positiva. Minha ignorância me levou a, literalmente, ignorar a natureza sexista da sociedade e agir de acordo com meus princípios, sem me importar com o que os outros pensariam a respeito disso. Eu só não queria fazer isso sozinha, precisava de um parceiro para me dar a mão nesta caminhada. E tive a sorte de encontrar alguns…
Obviamente, essa é a introdução da história e minhas razões para não querer ser mãe, assim como eu, foram evoluindo e sofrendo transformações com o passar dos anos. Se tiver curiosidade e, fique atento aos próximos posts, pois irei listar e explicar cada uma dessas motivações, para que mais pessoas (que porventura ainda tenham dúvida se querem ou não) possam ler a respeito do assunto e entender se estão de fato representadas por este projeto ou se ainda não têm uma opinião formada.
Nossa, eu amei seu relato. Hoje em dia eu tenho 18 anos, e acredito que porquê eu tenha nascido em anos que a modernidade já estava começando a chegar nas nossas vidas, eu já sabia desde pequena que não queria ter filhos. Assim, eu nunca pensei em ter filhos, na verdade, eu só olhava outras mulheres tendo filhos, cuidando e etc, mas nunca me interessei por isso. Hoje vejo que a minha realidade não foi igual a de muitas mulheres e ainda não é, mas espero poder passar minha visão pra muitas mulheres e homens ainda, e confortar corações também sobre isso.
Que bom que você já consegue ter essa visão e essa noção tão cedo, é um privilégio, de fato. Infelizmente, não é a realidade da maioria das mulheres e muitas acabam sucumbindo à maternidade de forma totalmente compulsória.