Texto de Marlei Maria Diedrich
Acomodada no meu mundinho, mais restrito ainda pela pandemia, sou convidada pela corajosa blogueira do Sem Filhos, Patrícia Librenz, a escrever sobre minha decisão em não ter filhos. Isso, obrigatoriamente, me leva a uma viagem no tempo.
E, nessa viagem, embora eu tenha pensado, inicialmente, em organizá-la cronologicamente, percebi que não há como separar a Marlei em madura, jovem, criança. Sou a mesma pessoa, que foi se constituindo, aos poucos, convivendo com ideias radicalmente tradicionais por mais tempo (família, vizinhos) e com ideias “revolucionárias” (discretamente) pelas leituras e, bem mais tarde, pelo contato com pessoas de pensamento distinto ao que me era comum até a vida adulta. Mas eu tinha uma ideia de liberdade desde muito cedo, mesmo sem consciência disso, na comunidade interiorana (leia-se “roça”, no sentido mais raiz), embora brincasse de boneca e sonhasse em ser cunhada da Maria Bethânia (sim, desejava casar-me com Caetano Veloso).
Apesar de ser óbvio, prefiro enfatizar: cada caso é único. Pode ter semelhanças, mas nunca dá para generalizar. Então, optar por não ser mãe, embora tenha pontos em comum, similaridades, é decisão única. Portanto, só posso relatar a minha experiência, que ninguém conhece, efetivamente. Ela é passível de comentários, avaliações, comparações, mas não de alterações. Foi vivida por mim, tão somente por mim. E é apenas um dos aspectos que me faz ser quem sou.
A decisão de não ter filhos foi precedida pela ideia de casamento, de “felicidade conjugal”. Ainda pré-adolescente, assustava minha mãe, ao dizer: “vou casar quantas vezes forem necessárias”. Eu não aceitava que um casal ficasse junto em nome dos filhos, como via ocorrer. Aos 14 anos, em 1977, quando a Lei do Divórcio foi aprovada, comemorei ao ouvir a notícia na rádio, enquanto almoçávamos. Meu pai reagiu: “Fica quieta, porque você não sabe o que está falando. Isso vai ser o fim da família”. Casei-me aos 21 anos, provavelmente como uma oportunidade de sair da roça e ir para a cidade, onde pude fazer a faculdade, sonho adiado até então, embora eu já fosse professora na rede municipal desde os 17 anos. Desse casamento, se o mantivesse, possivelmente, teria me tornado mãe. Afinal, antes de casar, perdi para o sogro machista e radical a batalha de não usar o sobrenome da família dele. Então, teria sido muito difícil convencê-lo a aceitar que não teríamos filhos. Isso, aliás, nem foi discutido entre mim e meu marido. E, faltando um semestre para concluir a faculdade, nos separamos. As aulas eram uma justificativa aceitável para eu não engravidar.
Dito aqui, sucintamente, parece que meu casamento se resumiu apenas à possibilidade de estudar. Mas havia sentimento, sim. A consciência de que era uma ponte que ligava dois mundos só tive bem mais tarde, na terapia.
No segundo casamento, que durou 18 anos, foi tranquila essa opção, porque meu companheiro já tinha filhos, ou seja, não sofri pressão alguma nesse sentido. Uma realidade privilegiada, de certo modo. Aliás, quando estávamos juntos há 5 anos, ele fez vasectomia.
Liberdade foi a motivação principal para não ser mãe. Ir e vir, sabendo que a única pessoa a quem devo prestar contas sou eu mesma. Decidir sair, juntar o básico, passar a chave na porta e pronto. No máximo, uma mensagem para uma irmã, informando meu paradeiro.
Família – sim, amo a minha! Parece contraditório? Não! Essa família foi constituída sem minha interferência. Ela existe. Faço parte dela. E é bom demais o convívio. É imenso o amor!
Ao longo da minha jornada de não mãe, tive momentos que preferia não ter vivido, mas que fazem parte dessa cultura patriarcal e religiosa que “organiza” a sociedade. Um deles, que se repetiu inúmeras vezes, foi responder à pergunta: você não tem filhos? Ao dizer “não”, a conversa se estendia, levando aos motivos, que provocavam conselhos e intromissão na minha vida. Uma das saídas que vi para evitar isso foi dizer que não podia ter filhos. Muita ingenuidade da minha parte, pois gerou discursos e aconselhamentos sobre a adoção. Então, com o tempo, aprendi a desconversar, usando um tom meio melancólico (impossível de reproduzir aqui) na minha resposta curta – “Nãooo, nãooo tenho…”. Acredito que essa “melancolia” que eu colocava na negativa causava certa comoção, levando a interlocutora a concluir as piores hipóteses, que a deixava constrangida em continuar o assunto.
Na família, exceto pela minha avó materna – que questionou quem cuidaria de mim na velhice e chegou a dizer que eu e uma prima éramos “falhadas” -, o que lembro não remete a críticas. Ouvi várias vezes a pergunta: você não quer mesmo ter filhos? Mas não vi como questionamento para me fazer mudar de ideia; apenas para confirmar o que já se sabia. Tenho a impressão de que, desde que me assumi como a irmã, a tia sem filhos, fui aceita como tal, sem preocupações – pelo menos, não explícitas. Isso me dá até certos privilégios: recebo muitos convites para viagens, festas, ocasiões variadas.
Inevitável que algumas pessoas pensem: mulheres sem filhos não gostam de crianças. No meu caso, errado! Meus sobrinhos sempre foram muito presentes na minha vida e, sem dúvida, nossa relação foi muito marcante. Tenho seis sobrinhos-netos. Embora eu não conviva tanto com eles como convivi com os sobrinhos, ao encontrá-los, os sentimentos são os mesmos: amor, carinho, satisfação de estarmos juntos. Sou referência na vida deles. E isso se deve ao que meus sobrinhos vivenciaram comigo e transmitiram aos seus filhos.
Além das crianças da família, fui alfabetizadora durante 11 anos. É possível ser professora na educação infantil sem gostar de crianças? Talvez até seja, o que exige um profissionalismo extremo para não se deixar influenciar pelas preferências pessoais. Eu, no entanto, não conseguiria. Por isso, tenho certeza de que essa experiência profissional foi prazerosa e teve sucesso por eu gostar de crianças. Elas são muito envolventes, sinceras, intensas e também “grudentas”. E nunca senti necessidade de detê-las, de afastá-las. Amava essa relação – mesmo assim, não tive vontade de ser mãe, cuja responsabilidade seria para sempre.
Muitas vezes, no mercado ou em outro lugar, uma criança pequena olha para mim e sorri, tentando interagir. Nunca ignoro. Mesmo que seja apenas um sorriso, um olhar de atenção.
Aos 57 anos, como avalio a decisão de não ser mãe?
Foi a decisão certa para mim, sem dúvida. Estou absolutamente confortável, sem arrependimentos. E sem preocupações com o futuro nesse sentido. Filhos não garantem que, no final da vida ou na doença, os pais sejam diretamente bem cuidados por eles. Eu e meus irmãos (três irmãs e um irmão) cuidamos tanto do pai quanto da mãe (ambos já faleceram). Mas não é regra. E nem pode ser, porque cada situação é única, e cada um trilha seu caminho, conforme possível. Há razões e razões, em qualquer situação.
Várias colegas e amigas, mais jovens, sentem-se à vontade para falar comigo sobre não ter filhos. Percebo que muitas pensam, sim, em não tê-los, como eu. No entanto, ainda sentem a cobrança da sociedade, da família, especialmente dos sogros e dos pais (“E o meu netinho? Melhor que seja logo, enquanto posso aproveitar!”) e, de forma menos direta, do companheiro – que, apesar de não se sentir nem um pouco motivado a mudar sua vida para assumir a educação de um filho, remete ao desejo dos pais (“Eles querem tanto!”) e acaba, “sem querer”, pressionando também.
Importante reiterar outra obviedade: antes de ser mãe, dá para decidir não ser; depois de ser, inevitavelmente, se é mãe para sempre. Excelente, boa, ruim ou péssima mãe. E existem todos esses tipos, incontestavelmente – isso se estende a ser pai. Como sou mulher, estou relatando a experiência feminina, a possibilidade de decidir não ser mãe. Então, essa decisão cabe exclusivamente a cada uma. O que me levou a pensar sobre isso foi a concepção de casamento, que retomo aqui para afirmar: se, para manter o relacionamento, for necessário abrir mão da liberdade e tornar-se mãe sem que esse seja um forte desejo, então, o que precisa ser reavaliado é o relacionamento.
A mulher precisou (e ainda precisa) enfrentar muitas lutas para garantir direitos que lhe são devidos naturalmente. E protagoniza. Empodera-se. Mas será que até sobre a possibilidade de não ser mãe, precisa “lutar” para convencer os outros sobre seu desejo? Acredito que essa reflexão resume meu pensamento.
Acrescento, ainda, que não se trata de dividir as mulheres entre mães e não mães. Trata-se de características diferentes, desejos distintos, gostos variados, mas de mulheres, acima de tudo.
Adorei! Meu Deus, como amei esse texto! Eu tenho 18 anos e desde que me conheço por gente e a pensar mais no futuro, não quero ter filhos, acredito que dificilmente isso irá mudar e esse seu texto me fez pensar mais sobre esse assunto, obrigada por postarem esse texto.
A Marlei arrasou demais, ler esse tipo de relato, de quem tem mais experiência, traz muito conforto, segurança e tranquilidade, né não?
Fico feliz em contribuir, minimamente, para que o tema, pelo menos, seja encarado, discutido, sem frescuras.
Obrigada, Manoela! A intenção, ao compartilhar como me sinto hoje, aos 57 anos, sem filhos, é justamente a ajudar a quebrar o tabu de que ser mulher equivale, necessariamente, a ser mãe. Mas o importante mesmo é que cada uma se sinta livre para decidir. Abraço!
Fantástico!
Obrigada, Adriana!
Marlei, como sempre, cheia de si! Que alegria conhecer um pouco da trajetória de vida desta mulher incrível, minha colega de trabalho, com orgulho! Com tua história, tuas reflexões, o exercício da busca por identificação é inevitável. Sendo ou não mãe, quereno ou não ser mãe. Aí está a grandeza do teu texto, amiga. Te conhecemos e nos reconhecemos diante de pilares pesadamente convencionados pela nossa sociedade.
Dari, fico extremamente lisonjeada com seu comentário, porque sou eu que a admiro como exemplo na luta por direitos, na quebra de paradigmas, na busca constante da igualdade de condições. E, sim, o direito de não ser mãe e ser feliz com essa possibilidade faz parte desses “pilares convencionados pela nossa sociedade”, que você menciona. Sejamos nós mesmas, cada uma do seu jeito.
Maravilhoso texto! Me identifiquei muito!
Também já menti que não podia ter filhos, no meu caso em entrevista de emprego… Que bom encontrar pessoas que compartilham nossos sentimentos.
Aline, obrigada! E é isto mesmo: ao contarmos nossas experiências, algo que parecia tão particular, exceção com uma ou outra, mostra-se mais comum. Quantas mais já mentiram para atender à expectativa do senso comum? Aos poucos, vamos ficando mais à vontade e sem medo de assumir a decisão de continuar sem filhos.
Que texto maravilhoso, que relato leve e agradável de suas escolhas de vida. Não ter filhos é uma escolha e não deveríamos ter que responder perguntas inconvenientes para a sociedade todos os dias sobre isso… Que possamos ter direito de escolha como mulheres e cada vez mais possamos ver relatos como o seu, é tão bom me sentir identificada e representada.
Obrigada pelo apoio, Paola! Com essas interações, também me sinto representada.
E é exatamente como você disse: “não deveríamos ter que responder perguntas inconvenientes”. Nem sobre não ter filhos, nem sobre assunto nenhum. Liberdade, liberdade!
Sensacional. O que me surpreende é que hoje, 2020, nós mulheres estejamos lutando pela simples liberdade de escolha. Só que eu vou além, ainda fico muito triste com o condicionamento à maternidade, a imposição da sociedade, a propaganda do “ser mãe é a melhor coisa”. E digo que a maioria das mulheres são levadas a serem mães, elas acham que estão fazendo uma escolha, mas no fundo e na maioria das vezes, são condicionadas a isso. Eu decidi não ter filhos, mas você acha que sou feliz com essa decisão? Muitas vezes não, porque a pressão é tão grande que em muitos momentos fica insuportável, porém, ceder não é uma opção.
É, Carol… é revoltante mesmo que tenhamos que lutar por uma coisa que deveria ser um direito: nossa escolha. Eu concordo contigo em tudo. A maioria das mulheres que pensa que escolheu ser mãe comprou uma visão romantizada da maternidade. Elas sequer podem afirmar que elas realmente escolheram isso, pois a pressão é tão grande que é impossível distinguir o que é nosso e o que é comportamento de manada. Contudo, mulheres que não desejam ser mães realmente foram confrontadas por si mesmas em algum momento e essas sim pode-se dizer que fizeram uma escolha.
Concordamos em gênero, número e grau <3
Carol, obrigada pela leitura e pela contribuição ao comentar.
Realmente é difícil. Não tem fim nossa luta como mulheres. Mesmo independentes, bem-resolvidas, temos, às vezes, que enfrentar situações desnecessárias. Bom termos espaço para falar sobre tudo isso.
Eu que agradeço por compartilhar essa experiência e mostrar que não estamos sozinhas!